A pandemia global pela COVID-19 tem alterado a rotina médica de forma dramática nos últimos meses. No dia em que essa postagem foi escrita o mundo somava mais de 72 milhões de casos da doença com cerca de 1,6 milhões de fatalidades. No Brasil já se somam quase 7 milhões de casos da doença com cerca de 181 000 óbitos.
Nesse contexto, o exercício da medicina foi afetado em todo o planeta e a prática da Endoscopia Digestiva foi, também, impactada de forma notável, visto que os procedimentos endoscópicos são potencialmente geradores de aerossóis com potencial considerável de disseminação da doença.
Em vários momentos, durante a evolução da pandemia no ano de 2020, houve necessidade de redução ou mesmo paralização dos procedimentos médicos eletivos. Um levantamento conduzido no início da pandemia, por Arantes e colaboradores, demonstrou que, no início da pandemia, mais de 85% dos endoscopistas estavam trabalhando apenas com procedimentos de urgência/emergência. Em alguns estados houve necessidade de deslocar preceptores e trainees de suas funções originais para atender pacientes com COVID-19 e parte dos serviços de endoscopia precisou redimensionar ou transformar suas instalações.
Nos EUA e Europa não foi diferente, com estudos mostrando que aproximadamente metade das equipes de endoscopia afastaram os trainees das atividades rotineiras.
Os serviços de endoscopia estão lidando com uma demanda reprimida significativa. Os pacientes estão reticentes em ir ao hospital. A atividade e a renda dos médicos foram alteradas. Há medidas rigorosas em relação ao uso de EPI, que estão sendo adotadas em todo o planeta, o que tem evitado o contágio das equipes, dos pacientes e tem mitigado a propagação da doença de forma efetiva. A carga emocional tem sido intensa nos ambientes de trabalho e a adoção da telemedicina começou este ano em muitos países e está em franca ascensão.
O controle do contágio do SARS-CoV-2 passa por protocolos de distanciamento social, o que tem trazido importante limitação nas atividades de ensino e treinamento da Endoscopia Digestiva. Teremos provavelmente um longo período de convívio com o SARS-CoV-2 e há a necessidade de traçar estratégias de reestruturação e, até mesmo de reinvenção das atividades de ensino. O ensino e treinamento em Endoscopia Digestiva inclui um conjunto de habilidades técnicas complexas, habilidades comportamentais e cognitivas. Cabe lembrar que um mês “parado” significa perda de cerca de 10% da aprendizagem do ano.
Nesse contexto as sociedades de Endoscopia Digestiva têm exercido um papel fundamental. A SOBED acompanhando de perto a evolução da pandemia publicou seis diferentes recomendações para a realização de endoscopia digestiva de forma segura. Além disso, proporcionou oportunidades autônomas de ensino e melhorou a comunicação com os associados, incluindo os associados trainees.
No entanto nem tudo tem sido prejuízo durante a pandemia! Nesse momento de retração das atividades, os serviços de endoscopia envolvidos com ensino, podem se dedicar à pesquisa e a implantação de metodologia de aprendizagem individualizada e autônoma. Alunos iniciantes podem aperfeiçoar competências cognitivas, enquanto alunos de segundo e terceiro anos podem focar seus esforços em sanar deficiências ajustando as agendas às suas necessidades.
A evolução da tecnologia tem sido imprescindível para possibilitar a realização de aulas virtuais, sessões de discussão de casos clínicos virtuais, e-learning individualizado, realização de congressos de forma virtual, dentre outros.
E então, de repente......o que era exceção virou a nossa rotina!
Líderes em Endoscopia Digestiva têm participado de Webinars, hangouts e debates, fomentando o aprendizado à distância. Eventos tradicionais estão acontecendo em formato web inclusive com realização de casos ao vivo.
Mídias sociais estão se tornando plataformas de ensino e canais como Youtube tem promovido projetos educativos com formação de “livrarias virtuais” e “videotecas”. O uso de simuladores tem sido estimulado e os modelos de simulação têm sido adaptados e simplificados para o uso rotineiro e disseminado.
Como os preceptores em endoscopia digestiva têm acompanhado esses movimentos? Há um reconhecimento quase que universal que essa redução nos atendimentos endoscópicos tende a gerar vários problemas. Teremos uma demanda reprimida grande, um atraso no diagnóstico de neoplasias, que impactará de forma negativa no prognóstico dos pacientes, piora de doenças crônicas que ficarão sem acompanhamento, e várias doenças benignas não diagnosticadas e não tratadas. O treinamento para distanciamento social e o uso correto dos EPI tem provocado adaptação das equipes, com flexibilização nas escalas de trabalho e formação de vários times dentro da mesma equipe.
Aos preceptores cabe, ainda, fazer a gestão dos seus serviços, promovendo um balanço entre maximizar oportunidades de ensino e treinamento e fazer atendimento adequado aos pacientes, trabalhando com metas. Além disso a manutenção do bem estar no ambiente de trabalho é uma preocupação. Preceptores e trainees estão lidando com uma carga emocional intensa, medo, perdas, adoecimento de colegas e familiares, expectativas perante a retomada, menores oportunidades de trabalho e de aprendizado, e um impacto econômico sem precedentes.
E como tem sido a vida dos trainees durante essa pandemia? Um estudo conduzido pela Italian Association of Young Gastroenterologista and Endoscopist (AGGEI) com 183 trainees em endoscopia digestiva (61,8% abaixo de 30 anos de idade) mostrou que cerca de 73,8% dos serviços reduziram as atividades atendendo somente endoscopias de urgência e o número de exames de endoscopia caiu drasticamente na Itália (91%). 84,5% dos respondedores da pesquisa relataram que o ensino e aprendizagem foram bastante impactados por ocasião da Pandemia, 52% relataram que o preceptor estava menos disponível e 66,4% relataram que foram completamente afastados da realização de determinados procedimentos endoscópicos. Um dado preocupante foi que apenas 63,2% alegaram ter acesso a todos os EPI necessários nos serviços.
O estudo avaliou algumas percepções desse momento de Pandemia, usando uma escala graduada de 0 a 10 e os trainees relataram medo de se infectar (graduado como 6), medo de infectar a família e pacientes (graduado como 8) e sensação de estarem protegidos no ambiente hospitalar (graduado como 5). Algumas propostas foram levantadas pelos próprios trainees para contornar o prejuízo nos programas de treinamento: 58,4% propuseram prolongar o período de treinamento, 22,7% propuseram aumentar as atividades hands-on e 10% propuseram ampliação de atividades teóricas.
Sabemos que o ambiente da educação médica é transgeracional e que a pandemia trouxe uma disrupção na educação médica tanto na graduação quanto nos programas de especialização e residência médica. Incorporar o ensino à distância é muito fácil para alguns e torna-se motivo de stress para outros.
O ensino à distância tem inúmeras vantagens, talvez, uma das principais seja a sua conveniência: os envolvidos usam seus dispositivos móveis pessoais e podem se conectar de qualquer lugar, sem preocupação com deslocamentos. Esse fato proporciona oportunidades de trocas internacionais e institucionais além da facilitar bastante a logística das reuniões.
Por outro lado, o ensino à distância não consegue substituir ou replicar as complexas interações do ensino médico, e os benefícios da interação humana nas relações de ensino-aprendizagem, Podemos citar alguns exemplos: falar em público significa vencer as “barreiras” da timidez e também, saber avaliar o interesse e reações das pessoas, gerar confiabilidade nas apresentações e aprender a “ler” a linguagem não verbal. Encontros presenciais propiciam o networking e desenvolvimento de relacionamentos profissionais e pessoais mais significativos. Scarlat e colaboradores colocaram em seu editorial sobre ensino em tempos de pandemia que ir a um congresso de forma presencial significa se atualizar e aprender, e, além de tudo “ir a lugares, conhecer pessoas e fazer coisas” (em tradução livre).
A tecnologia está constantemente mudando a cara da ciência em vários aspectos, particularmente na disseminação e interpretação do conhecimento acadêmico e resultados. O avanço em tecnologia e comunicação alcançado nestes últimos meses é substancial e apontou as qualidades do aprendizado virtual, muitas atividades agora são mais fáceis, acessíveis e rápidas e eventualmente isso vai nos mostrar que nem todas as aulas e palestras tradicionais são obrigatórias no currículo médico. No entanto, as consequências de longo prazo no processo e na trajetória de carreira dessa nova geração de médicos terão que ser avaliadas.
A pandemia trouxe inúmeras limitações e ao mesmo tempo oportunidades para reinventar o ensino e treinamento da Endoscopia Digestiva. Modelos baseados em volume e aprendizagem passiva provavelmente se tornarão obsoletos. Discussões sobre carreira, liderança, criação de uma rede de auxílio e bem estar, melhora dos processos de comunicação, apoio das sociedades de endoscopia já são realidade. No futuro, a educação médica pode migrar para um modelo híbrido com webinars e reuniões virtuais complementadas com atividades clínicas e presenciais tradicionais, sendo necessária mais flexibilidade e adaptação.
A tabela a seguir resume as recomendações e sugestões apontadas pelos estudos mais recentes sobre ensino da Endoscopia Digestiva durante a Pandemia.
REFERÊNCIAS
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